terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Um mergulho na vida de Bruna Surfistinha

José Carvalho, um dos roteiristas de Bruna Surfistinha, que estreia em fevereiro, falou com ÉPOCA sobre como foi adaptar o livro homônino de Raquel Pacheco para o cinema. O roteiro foi feito com Homero Olivetto e Antonia Pellegrino e teve importantes contribuições da autora, que fugiu de uma família de classe média para se tornar garota de programa. Carvalho diz que o filme não faz julgamentos das escolhas da protagonista (ótima atuação de Deborah Secco, segundo ele), mas se debruça sobre os conflitos psicológicos e familiares que a levaram a uma nova vida – intensa e cheia de desequilíbrios. "É uma lógica completamente outra (a da prostituição)", ele afirma. "É um dinheiro que você não pode declarar no Imposto de Renda, você é um cidadão e não é. É uma coisa toda quebrada, toda confusa", diz. Hoje, Raquel não faz mais programas e se refere à Bruna em terceira pessoa, como se fosse mesmo um personagem.


ÉPOCA – Como foi adaptar a vida de uma garota de programa de classe média para o cinema?
José Carvalho –
O livro, na verdade, foi só um eixo da adaptação, porque a Raquel Pacheco participou muito, foi muito generosa, abrindo informações que não estão no livro e se posicionou a favor do drama. Ela se expôs o tempo inteiro. Foi incrível, uma surpresa. E algumas coisas a gente adaptou para que a história ficasse mais orgânica e tivesse mais ritmo.

ÉPOCA – Em quanto tempo o roteiro foi feito?
Carvalho –
O processo todo foi de quase dois anos. Pelo fato de ela ser uma garota de programa saindo de classe social mais alta criou uma expectativa no público de que a gente poderia partir para uma coisa bizarra, ou escatológica, valorizando esse aspecto inusitado, quando na verdade é uma história que tem sexo, porque uma garota de programa trabalha com isso, mas as questões de fundo psicológico e familiar estão muito presentes no filme. Toda vez que a gente ia a público defender o filme ou para um patrocinador, ou quando a gente apresentou para a imprensa, a gente sempre reforçou que, pelo fato do cinema brasilerio ter uma mão muito pesada em relação ao sexo, seria um fundo falso. O filme é sobre uma garota de programa, mas com densidade psciológica, com as questões que ela atravessou que permeiam a sua trajetória.
ÉPOCA – Como você trabalhou essas questões no roteiro? O drama psicológico determinou a trajetória dela?
Carvalho –
Não... tem uma coisa que é anterior a isso. Pelo fato da Raquel ser filha adotiva, ela sempre se colocou como se estivesse em desvantagem em relação aos irmãos. Ela nunca aceitou essa condição de filha adotiva. Em vez de ela ter criado uma relação de gratidão e de respeito, ela criou uma relação de revolta. Aí se abriu uma ferida emocional que motivou a saída dela de casa. Escolher ser uma garota de programa foi para chamar a atenção dos pais adotivos para essa ferida emocional. A gente vasculhou de todos os lados o que foi essa relação dela com a família e não conseguiu encontrar nenhum "problema" do ponto de vista da família, e ela assume isso nas conversas. Ela fala "eles foram maravilhosos para mim. Eu é que não tive maturidade para aceitar que eu era filha daquele lar". Ela se sentia meio partida, meio humilhada, menor. Ela queria muito ter tido contato coma mãe biológica. Então tudo o que aconteceu dali pra frente, que culmina na saída dela de casa, está diretamente relacionado a essa ferida emocional.

ÉPOCA – E o filme começa em que parte da vida dela?
Carvalho –
O filme começa com uma reflexão sobre essa saída,ela pensa qual foi a motivação principal (em relação aos pais) para ela ter saído de casa. Porque durante o processo todo que ela se torna uma garota de programa, fica famosa, dá tudo "certo", ela sentiu muita culpa em relação à mãe. Ela achava que tinha uma dívida de gratidão para com ela, já que com o pai ela estragou a relação de uma forma que era um caminho sem volta. Mas mãe tem esse instinto, supera tudo, o instinto materno é sempre superior aos problemas. Ela sai (de casa) fazendo essa reflexão, e, num dado momento, assume que saiu, em boa parte, para chamar atenção para essa ferida emocional. O núcleo familiar tem pouco peso do ponto de vista das imagens exibidas, está muito mais ou em alguns momentos de flashback, ou como mea culpa dela.

ÉPOCA – E isso tem no livro?
Carvalho –
No livro isso aparece muito, a relação dela com a família, inclusive como ela tinha outras patologias que não foram exploradas pelo filme senão ia ficar uma coisa inconcebível para narrar em uma hora e quarenta. Ela tinha pulsões de cleptomaníaca, teve bulimia, teve ela se tratou pesado com psiquiatria. O pai, já meio desistindo, pensou em entregá-la para o Estado, desisitir de tudo, mas a mãe continuou lutando para que ela ficasse com a família... A trajetória é toda acidentada, está no livro de uma maneira muito corajosa e o que a gente fez foi potencializar isso para não ficar parecendo que era um filme sobre uma garota estriônica sexualmente, que encantava os clientes, que teve um blog incrível e que ficou bem de vida. Não é essa história, jamais. E nem vai ser uma fonte inspiradora para uma menina da idade dela falar: "poxa, ser garota de programa é uma coisa bacana, vou seguir o mesmo caminho da Raquel Pacheco". A gente mostra que aquilo tudo foi resultado de um (estado) emocional que ela vivia. Ela estava completamente despedaçada emocionalmente quando ela colocou o pé no Privê (a casa de prostituição).

ÉPOCA – Quais informações novas foram colocadas no roteiro que não existiam no livro?
Carvalho –
A mais marcante, eu diria, foi uma cena que eu acho que ficou muito forte, muito interessante, em que o irmão dela supostamente descobre que ela está trabalhando no Privê, aluga um horário para trepar com ela, e, quando ela abre a porta do quarto, é ele que está lá. Ele passa a limpo toda a trajetória dela dentro da família, diz horrores a ela, fala que ela foi egoísta, imatura, que não pensou em niguém, humilha, avacalha e sai. O irmão fica com muita raiva com o fato de assistir ao sofrimento dos pais sem que ela se mova, em nenhum momento, para aplacar esse sofrimento. Ela não se comunica com a família, ela até ameaça, mas não se comunica.

ÉPOCA – Houve cenas picantes que ela descreve no livro e vocês não quiseram usar?
Carvalho –
O que a gente não usou é o que está relacionado à escatologia. Tem um capítulo, "Cenas proibidas de Bruna Surfistinha", com cenas de perversão, alguns clientes maníacos, pessoas que pediam as coisas mais bizarras e mais escatológicas, e ela descreve algumas delas; a gente julgou desnecessárias. Tem um pincelada ou outra, mas uma coisa muito sutil. Por exemplo, alguns caras pediam para ser comidos por ela com pênis de borracha...

ÉPOCA – Mas isso não é escatológico...
Carvalho –
Do jeito que está narrado no livro é (risos). Tem outro que pede para ela enfiar o braço no ânus, entendeu? A gente pegou umas que são mais leves e de vez em quando pincela num clipe ou outro para mostrar que faz parte do mundo dela, mas não para criar sensasionalismo ou um filme meio à la Pasolini (Pier Paolo Pasolini, diretor italiano), com as pessoas fazendo xixi (risos). Se a gente abraçasse isso como uma bandeira, o filme ia carregar esse estigma de uma mão pesada para o sexo. Aí as pessoas falariam "ah, aquele filme cheio de sacanagem que a Deborah Secco fez". A gente ia ficar num limiar difícil de reverter essa imagem e não poderia colocar em primeiro plano, como a gente colocou, uma persoagem com densidade psicológica, com milhões de conflitos... Ela se achava muito feia, muito inadequada, era gordinha, ela se sentia rejeitada pelos outros garotos, ela não conseguia se encontrar na mesma classe social das colegas – por ser adotiva ela vinha de uma realidade mais humilde – e sempre se colocava em segundo plano. Isso tudo está na frente da questão da sexualidade, mas tem cenas bem fortes: de exposição da Deborah, de nudez...

ÉPOCA – Quais são as cenas mais fortes?
Carvalho –
A mais forte, na verdade, é a mais lírica para mim. É uma cena que ela, pela primeira vez como garota de programa, se deixou sentir atração por um cliente. Ela se permite ter mais prazer com esse cara, se solta mais e deixa que o sexo oral seja mais natural (risos). Ela se entrega, ela namora o cara. É a cena mais quente, mas é uma cena romântica, no final das contas.

Divulgação/Priscila Prade
A interpretação de Deborah Secco foi muito elogiada por Carvalho. "Ela conseguiu naturalizar a nudez dentro do set"
ÉPOCA – O filme é forte? Essa experiência dela é carregada de muita coisa negativa...
Carvalho –
Eu vou te dar uma resposta com um dado que tem na última cena do filme. Ela passa por essa bad trip das drogas, consegue sair e se recuperar. Nisso, o personagem do Cássio Gabus Mendes (o namorado) já se separou da mulher e diz "tô à sua disposição, quando você quiser, a gente começa uma vida". Ela é supergrata a ele porque nos momentos mais difíceis ele sempre esteve do lado dela. E ela diz: "eu até estou a afim de ter um relacionamento com você, mas eu só vou depois que juntar uma grana bacana para poder me garantir porque eu não quero depender de ninguém. Eu não saí de casa para depender de alguém". E anuncia que vai, durante seis meses, fazer 800 programas para juntar uma grana bacana para poder começar uma vida com ele (risos). 800 programas. Na época em que ela estava bombando, ela fazia, em média, seis programas por dia. Faz essa conta aí (risos). Se ela trabalhasse de segunda a sexta, seriam 30 programas por semana, 120 trepadas por mês. Eu acho isso forte o suficiente para as pessoas fazerem uma reflexão sobre o que é a vida de uma garota de programa. Para não achar que é tudo florzinha, sacanagem, dinheirinho fácil. Você pega seu corpo e fala: "vou trepar 120 vezes no mês" (risos) não é para qualquer um. Tem esse lado da realidade do trabalho. O cara (namorado) carrega quarenta sacas de café a cada cliente, é barra pesada. O final é comovente, porque mostra uma certa solidão dessa escolha. Você está com todo mundo e não está com ninguém, você está numa vida meio esquisita, tem um dinheiro que você não pode declarar no Imposto de Renda, você é um cidadao e não é... É uma coisa toda quebrada, toda confusa. É uma lógica completamente outra, eu acho que o filme leva a esse tipo de especulação por parte do público. "O que é ser uma garota de programa? Ela guarda o dinheiro em caixa de sapato? O dia que ela cansar, se ela não tiver guardado dinheiro, ela vai viver do quê?

ÉPOCA – E a Raquel continua a fazer programas?
Carvalho –
A informação que a gente tem é que ela não faz mais programa. Ela vive com esse cara e estuda psicologia porque queria entender um pouco sobre as motivações dela. Mas, ao mesmo tempo, não é ela. Ela fala de um jeito quase como o Pelé fala na terceira pessoa, "o Pelé isso, o Pelé aquilo". Não é o Edson Arantes do Nascimento, é o Pelé, uma outra pessoa. "A Bruna isso, a Bruna aquilo." Não é a Raquel Pacheco, é a Bruna. Ela lava as mãos por aí, quase como se ela tivesse um duplo.  
ÉPOCA – E como foi para a Deborah Secco fazer a personagem?
Carvalho –
Ela conseguiu uma coisa dificílima para uma atriz, naturalizar a nudez dentro do set. Ela fica tão confortável, que não tem diferença de comportamento entre ela vestida ou nua. Sem falar que ela está maravilhosa (risos). Demorou muito para a gente chegar à protagonista, e eu acho que a Deborah vai dar um salto incríviel na carreira com esse filme. Teve um encaixe ali, com a coisa do corpo. Ao mesmo tempo ela abriu para a gente que tinha sentimentos parecidos na infância, porque ela tinha uma irmã muito bonita e ela se achava o patinho feio. E toda a história da Raquel Pacheco é essa, um patinho feio dentro daquela família. Teve uma química meio incrível, a Deborah está defendendo o papel muito acima da expectativa do que o público pode até esperar do trabalho dela. Sem subestimar o trabalho dela, mas acho que ela foi muito além. É difícil fazer cena de nudez. Mas o filme também tem cenas dela quebrando o pau com as colegas de Privê, caindo pesado nas drogas, em um relacionamento "estável". O Cássio faz seu par romântico, inspirado numa história real. Ela teve um cliente, que atravessou a vida dela toda como garota de programa, um cara que se apaixonou por ela, nunca desistiu e foi o cara que acabou tirando ela dessa vida. Tem milhões de questões com o Cássio dentro de um relacionamento caótico que deve ser um cara se apaixonar por uma garota de programa. A nudez não é relevante, ela é parte da identidade do personagem. Não tem gratuidade, na minha opinião, e foi uma coisa pela qual todos nós lutamos muito. As coisas mais bizarras estão lá porque fazem parte do cotidiano dela, e não para levar o público ao delírio com a Deborah Secco fazendo cenas de perversão.
ÉPOCA – Qual parte você achou mais difícil para adaptar?
Carvalho –
O filme tem duas etapas muito marcadas. A primeira é o período em que ela passa no Privê, que é seu primeiro ponto de prostituição. O segundo é quando ela já está ficando famosa, cheia de clientes, as pessoas ficavam loucas com ela. Ela tinha uma vida social melhor, se destacava mais fisicamente do que as outras porque tinha saído de uma realidade também melhor. Às vezes são meninas muito humildes que têm um padrão social mais baixo, e o cliente vai lá e se decepciona um pouco porque quer um simulacro do meio social de onde ele é. De repente ele encontra uma menina do mesmo meio social, com bom padrão de conversa, uma menina culta, que tinha estudado em escolas maravilhosas de São Paulo. Aí ela começa a arrebatar o público, os clientes, se capitaliza, tem um conflito com sua cafetina e resolve partir no segundo ato do filme para alugar um apart hotel, atender por conta própria, criar o pseudônimo de Bruna Surfistinha e um blog. Aí vira um sucesso avassalador. Esse segundo momento é mais visual do que cheio de conflitos, o que nos deu mais trabalho. A parte toda do Privê, o fato de ela se relacionar com as outras meninas, que tinham muita inveja, muita raiva dela, e ela ainda está vivendo todo o conflito de quem saiu de casa muito recentemente e ainda muito culpada, foi mais fácil de organizar do ponto de vista dramático. No apart hotel é outro momento, muito mais visual, ela ganhando dinheiro pra cacete, ela comprando roupa à beça, se tornando uma menina perdulária, até cair nas drogas. Aí quando cai nas drogas fica mais fácil de novo de conceber o conflito porque nas drogas é só conflito. Começa uma decadência total, ela não consegue atender os clientes, começa a perder dinheiro, se vicia em cocaína...

ÉPOCA – É mais fácil criar em cima do desequilíbrio do que em cima do equilíbrio. Carvalho – Exatamente. Como sempre, o drama procura o conflito. Esse momento que ela está "mais estável", que é o momento da criação do blog, foi o que nos deu mais trabalho para ajustar no filme.

ÉPOCA – Para ele continuar no mesmo ritmo?
Carvalho –
Exatamente, para ele continuar com conflito. Essa passagem foi a mais trabalhosa, mas eu acho que nos últimos cortes a gente conseguiu uma ótima adequação, ele está inteiriço.

ÉPOCA – O que o público deve esperar?
Carvalho –
É impressionante como a todo lugar que eu vou, as pessoas já sabendo que eu sou o roteirista do filme, falam: "cuidado com o que você vai colocar lá porque eu tenho uma filha, hein? Porque vai influenciar as novas gerações". Ficou esse temor de que a gente poderia fazer um filme com uma lição de moral positiva em relação ao fato de ela ter se tornado uma garota de programa. E a gente simplesmente não fez um juízo de valor. A gente não julga. A gente apresenta o que foi a trajetória dela, coloca toda as contradições de uma pessoa metida numa situação como essa, humanamente. Tem horas que ela está se achando o máximo, tem horas que ela acha que fez a coisa errada, tem o dia que ela acorda com o pé esquerdo, tem dia que ela se acha a mulher mais bonita do mundo, tem dia que ela se acha uma vagabunda... tudo isso está lá. O que o público vai encontrar é um retrato piscológico de alguém que fez essa escolha, e não o fato dessa escolha estar na frente da identidade psicológica. Podia ser um filme sobre uma menina que faz engenharia e que largou tudo para ser atriz. Ganhava bem, trabalhava numa multinacional, estabilizada, tinha um casamento sólido, dois filhos, e implodiu tudo, pediu demissão, se separou e foi ser atriz. Podia ser essa história. O que a gente fez foi naturalizar o fato dela ter sido uma garota de programa. Como o tema mexe com uma série de coisas, é muito mais sedutor do que outros, mas o que está na frente é essa questão psicológica. Todos os estudos indicam que em nenhum mercado forte de cinema no mundo, EUA, China, Índia, Senegal, você consolida um público se não fizer plotes com apelo comercial. O que a gente está fazendo é um filme equilibrado, que tem apelo comercial, mas tem densidade psicológica. É um filme com a trajetória de uma garota de programa que vai sendo extremamente instigante de assistir, mas que não é um filme vazio.
 

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